Parte III: A Casa de Davi
Outra passagem impressionante da estela (linha 10) é o testemunho de que pessoas da tribo de Gad viveram na cidade de Atarot “desde sempre”, coincidindo com a informação de Josué 17 de que a cidade de Atarot é uma espécie de enclave de Gaditas dentro do território da tribo de Rubén.
“Desde sempre” é entendido desde tempos muito antigos, centenas de anos. Mas ainda mais impressionante é o relato detalhado (linhas 14-18) sobre a conquista da cidade israelita de Nebo.
Na bíblia é bem conhecido o Monte Nebo, a famosa montanha e seus arredores na terra de Moabe, o local da segunda recepção da Lei e da morte de Moisés, mas a Bíblia nada diz sobre uma cidade com o mesmo nome, isso, apesar das listas muito detalhadas das cidades das diferentes tribos, incluindo as duas tribos e meia da Cisjordânia.
Não apenas isso, mas o relato da conquista da cidade de Nebo é diferente das outras cidades israelitas que Mesa afirma ter conquistado. As outras cidades geralmente são apenas listadas.
Em alguns, como Atarot, nos dá mais informações, mas Nebo é especial: ao contrário das outras cidades, aqui Mesha diz que foi à conquista da cidade de Nebo por ordem explícita de Kemosh “e me ordenou Kemosh: vá e conquiste Nebo dos israelitas”.
A seguir, nos diz que depois de lutar contra a cidade da madrugada ao meio-dia ele consegue conquistá-la, e realiza nela os seguintes atos:
A. Mata toda a população, incluindo meninos e meninas, e explica que fez isso como um “jerem” para Kemosh-Ishtar. “Jérem” na Bíblia é o termo usado em Josué 6 para descrever o ato de extermínio da cidade de Jericó por ordem de Deus. Paralelismo único.
B. Após o extermínio, Mesa disse: “E de lá peguei os utensílios de YHWH e os trouxe até Kemosh”. Esta frase única implica o seguinte:
1. Na cidade de Nebo existia um templo onde o Deus de Israel era adorado, e esse templo era conhecido e famoso a tal ponto que Mesa viu em sua destruição um ato simbólico muito importante, aparentemente baixo a concepção teológica muito difundida na área do domínio territorial das divindades nacionais.
2. A descrição da estela inclui uma “evidência de silêncio” de que os israelitas, ao contrário do costume nas cidades vizinhas, adoravam a seu Deus sem fazer sua imagem: O costume na antiguidade era, antes de destruir os templos de uma cidade inimiga conquistada, tomar as imagens dos deuses respeitosamente, destruir o templo e levar a imagem ao templo do deus dos vencedores, o que simbolicamente significava o reconhecimento do deus derrotado à superioridade do deus vitorioso.
A terminologia usada nesses casos – por exemplo, em textos mesopotâmicos – é “Eu levei a [nome do deus vencido] e o apresentei diante de [nome do deus vitorioso]”, ou algo semelhante. Aqui, Mesa relata que levou apenas os utensílios, muito semelhante ao relato da captura da arca pelos filisteus.
No ano 1994, mais de 120 anos após a publicação da estela, o epígrafo francês André Lemaire solicitou e recebeu uma permissão especial para realizar um novo estudo do “fac-símile” mantido no Louvre sob estritas condições de ar condicionado para preservá-lo, desta vez usando as tecnologias mais avançadas do momento.
O estudo deles produziu resultados dramáticos: na linha 31 (parcialmente preservada na pedra), próximo ao final da inscrição, pode-se ler claramente nas novas fotografias “BT[D] WD” (בת [ד]וד), ou seja, “A Casa de David” quase completamente exceto pela letra D (dalet).
O anúncio de Lemaire explodiu como uma bomba no ar já carregada de discussões acaloradas sobre o reinado de Davi e Salomão entre maximalistas e minimalistas, por duas razões:
A. Se o rei de Moabe no século IX percebeu que a dinastia real no reino de Judá é “a Casa de Davi”, isso significa que essa dinastia foi fundada por um rei chamado Davi – um fato negado pela maioria dos minimalistas mais recalcitrantes – de acordo com o costume nas línguas da região, de nomear os reinos desta forma, em nome do fundador da dinastia reinante.
B. Pouco antes da descoberta de Lemaire, no ano 1993, o arqueólogo A. Biran escavando na antiga cidade de Dan, no norte de Israel – uma cidade fronteiriça com os arameus no século IX -, descobriu uma inscrição gravada em pedra (hoje exibida no Museu de Israel em Jerusalém) erigida por um rei aramaico quando conquistou a cidade das mãos dos israelitas, precisamente também no século IX AEC, e nessa inscrição o rei aramaico afirma ter derrotado dois reis, o “rei de Israel” e o “rei da Casa de Davi ”, ou seja que a inscrição de Mesa é adicionada à de Tel Dan, e as duas juntas são evidências claras de que os povos e reinos da região sabiam que a dinastia governante de Judá foi fundada por um rei chamado Davi.
Sem surpresa, isso foi um tópico de debate, principalmente devido à falta de evidências para a letra D no nome de Davi.
Mas no ano passado, 2019, isso também teve uma virada: André Lemaire e seu discípulo Michael Langlois realizaram uma nova investigação da linha 31, desta vez utilizando a mais alta tecnologia da fotografia tridimensional.
Os resultados foram apresentados pelos dois estudiosos em um conclave de epígrafes em Jerusalém do qual eu tive a honra de participar, e foram posteriormente publicados (mais informações aqui: https://www.timesofisrael.com/high-tech-study-of-ancient-stone-keeps-davidic-dynasty-in-disputed-inscription/).
Os resultados mostram que existem indubitavelmente traços da letra D, e o nome David agora pode ser lido por completo. Por que Mesa nomeou o Reino de Judá em seu rastro, já que sua guerra era contra o Reino de Israel para se livrar de sua guarda?
Por dois motivos:
A. Como dissemos, naquela época os dois reinos, Israel e Judá, eram aliados próximos, e isso concorda com o que está relatado no terceiro capítulo de 2Reis, segundo o qual os reis de Israel e Judá marcharam juntos para sufocar a rebelião de Mesa.
B. Se analisarmos geograficamente o que está descrito na estela, as últimas linhas parecem narrar sobre a fronteira sul de Moabe, já na área de influência de Judá, e não de Israel, daí é tão lamentável a perda do triângulo inferior direito da estela, que certamente continha informações sobre Judá. Mesmo assim, apenas provando alguns pontos da estela como o fizemos, fica claro que mais de 120 anos após sua descoberta, continua a ser uma das joias epigráficas mais importantes da era bíblica.